Autor: Sabrina Sasso Nobre
Últimos posts por Autor: Sabrina Sasso Nobre (exibir todos)

A comunicação humana é um sistema complexo que envolve não apenas palavras, mas também nuances, metáforas, contextos sociais e emocionais. No entanto, algumas pessoas apresentam uma característica peculiar em sua forma de comunicação: a interpretação literal da linguagem. Esta tendência, que pode variar de leve a severa, está presente em diversos quadros neurológicos e psiquiátricos, e tem implicações significativas na interação social dessas pessoas.

A literalidade na comunicação refere-se à propensão de compreender e interpretar a linguagem exclusivamente em seu sentido direto e explícito, ignorando ou tendo dificuldade em processar aspectos implícitos como ironias, sarcasmo, metáforas, expressões idiomáticas e outros elementos figurativos da linguagem. Uma pessoa com alta literalidade pode, por exemplo, interpretar a expressão “estou morrendo de fome” como um indicativo de que a pessoa está realmente em risco de vida por inanição, em vez de simplesmente muito faminta.

A literalidade está relacionada a diferenças no processamento neurológico da linguagem e dos contextos sociais, envolvendo áreas como o córtex pré-frontal e o sistema límbico. Alterações nessas regiões podem levar a uma interpretação mais objetiva da comunicação, sem considerar nuances ou subentendidos. Pessoas com essa característica tendem a falar de forma direta e interpretar informações exatamente como são ditas. Um exemplo comum ocorre em instruções de montagem de móveis, onde a frase “aperte o parafuso até o final” deve ser seguida literalmente para garantir a montagem correta.

A teoria da mente (capacidade de atribuir estados mentais, crenças, intenções e emoções a si mesmo e aos outros) desempenha um papel crucial neste processo. Indivíduos com déficits na teoria da mente frequentemente apresentam dificuldades em compreender que o locutor pode querer comunicar algo diferente do significado literal das palavras utilizadas.

Durante o desenvolvimento típico, as crianças gradualmente adquirem a capacidade de compreender linguagem figurativa, ironia e humor. Este processo depende não apenas da maturação neurológica, mas também de exposição a interações sociais complexas e variadas. Pessoas que apresentam literalidade podem ter experimentado alterações neste desenvolvimento, seja por fatores neurológicos inatos ou por influências ambientais que limitaram sua exposição a diferentes formas de comunicação.

Quadros clínicos associados à literalidade

  • Espectro Autista (TEA): O Transtorno do Espectro Autista é frequentemente associado à literalidade na comunicação, pois indivíduos com autismo podem ter dificuldade em compreender sarcasmo, ironia, metáforas e outras formas de linguagem figurada. Isso ocorre devido a déficits na cognição social e na teoria da mente, tornando a comunicação social um desafio constante. Para essas pessoas, a interpretação literal das palavras é uma manifestação dessa dificuldade. Adaptar a linguagem para ser mais clara, objetiva e direta pode facilitar a interação e melhorar a compreensão na comunicação.
  • Transtornos de Aprendizagem e Linguagem: Distúrbios específicos de linguagem e aprendizagem, como dislexia e distúrbio específico de linguagem (DEL), podem também estar associados a dificuldades na compreensão de linguagem figurativa. Nestes casos, a literalidade pode ser uma consequência de dificuldades mais amplas no processamento linguístico.
  • Lesões Cerebrais e Transtornos Neurológicos: Lesões em áreas específicas do cérebro, particularmente no hemisfério direito, podem resultar em déficits na compreensão de aspectos pragmáticos da linguagem, incluindo a literalidade. Condições como acidente vascular cerebral (AVC), traumatismo cranioencefálico e algumas doenças neurodegenerativas podem afetar estas funções.
  • Esquizofrenia e Outros Transtornos Psicóticos: Pacientes com esquizofrenia podem apresentar dificuldades na compreensão de linguagem não-literal, particularmente durante episódios psicóticos. Estas dificuldades podem estar relacionadas a alterações no pensamento abstrato e na cognição social.
  • Transtornos de Ansiedade Social: Embora menos evidente, pessoas com transtorno de ansiedade social podem, em algumas situações, interpretar comunicações de forma mais literal como um mecanismo de defesa contra potenciais ameaças sociais. Isto pode ocorrer como uma tentativa de reduzir a ambiguidade em interações sociais percebidas como ameaçadoras.

Qual a diferença entre ser literal e ser sincero?

Embora possam parecer conceitos relacionados, a literalidade e a sinceridade são características distintas da comunicação e do comportamento humano:

A literalidade refere-se à tendência de interpretar e compreender a linguagem exclusivamente em seu sentido direto e explícito. Se trata de uma característica relacionada ao processamento cognitivo da informação recebida, e não é necessariamente intencional; geralmente é uma característica involuntária do funcionamento cognitivo. Afeta principalmente a recepção e interpretação da comunicação, e pode ocorrer independentemente do contexto social ou da intenção do comunicador.

A sinceridade por outro lado, refere-se à qualidade de ser honesto, autêntico e verdadeiro em suas comunicações e expressões. É uma escolha ética e um valor pessoal, não um estilo de processamento cognitivo, geralmente é intencional e reflete valores pessoais e morais. Afeta principalmente a emissão da comunicação e pode ser modulada pelo contexto social e por considerações sobre o impacto das palavras nos outros.

Uma pessoa pode ser sincera sem ser literal (por exemplo, usando metáforas ou humor para expressar honestamente sentimentos) ou ser literal sem necessariamente ser sincera (interpretando literalmente uma comunicação, mas respondendo com desonestidade).

A literalidade na comunicação pode ter implicações significativas para as interações sociais e o bem-estar psicológico. Indivíduos que interpretam a linguagem de forma literal podem sentir-se frequentemente confusos ou enganados em interações sociais, levando a isolamento social e frustração.

A intervenções psicoterapêuticas para indivíduos com alta literalidade podem incluir treinamento em habilidades sociais (ajuda a reconhecer e interpretar sinais sociais e contextuais); trabalha padrões de pensamento rígidos que contribuem para a interpretação literal; ajuda a desenvolver estratégias para familiares e cuidadores para comunicar-se efetivamente.

A literalidade na comunicação é uma característica presente em diversos transtornos neurológicos e psicológicos, refletindo diferenças fundamentais no processamento cognitivo e social. Compreender estas diferenças é essencial para desenvolver abordagens psicoterapêuticas eficazes e criar ambientes mais inclusivos para indivíduos que interpretam o mundo de forma literal.

Enquanto a literalidade se refere a um estilo de processamento cognitivo que afeta a interpretação da comunicação, a sinceridade é uma qualidade ética relacionada à honestidade na expressão. Reconhecer esta distinção é importante tanto para profissionais de saúde quanto para indivíduos que interagem com pessoas que apresentam alta literalidade, permitindo uma comunicação mais efetiva e respeitosa.

REFERÊNCIAS

Ferreira, Adriana. TEA E LITERALIDADE. Disponível em https://ondaautismos.com.br/blog/tea-literalidade#:~:text=Essa%20caracter%C3%ADstica%20envolve%20tamb%C3%A9m%20um,sem%20meio%20termo%20e%20rodeios. 2023.

Couri, Tereza. O que é literalidade? Disponível em https://terezacouri.com.br/glossario/o-que-e-literalidade-entenda-seu-significado/. 2025.